domingo, 25 de outubro de 2009

Um vale moldado pelo vinho

Dos primeiros parreirais ao reconhecimento da Indicação de Procedência

Era 30 de dezembro de 1876 quando os primeiros habitantes da região conhecida atualmente como Vale dos Vinhedos chegaram às terras altas da encosta nordeste do Rio Grande do Sul. Vindos predominantemente da província autônoma do Trento, na época dividida entre Áustria e Itália, eles encontraram, além de uma densa vegetação atlântica, o habitat ideal para 'trovare la cocagna' (buscar a fortuna) e reproduzir a cultura vinícola, que moldou hábitos, arquitetura e paisagens, evoluindo por cerca de 130 anos até transformar a região em expoente de economia diversificada e principal produtor de vinhos do país.

Uma cultura produtiva que para a museóloga bentogonçalvense Maria Stefani Dalcin, autora do livro “Vale dos Vinhedos, História, Vinho e Vida“ é e sempre será a principal identidade de Bento Gonçalves. “Meu nono, Antônio Dalcin II, é um dos colonizadores da região conhecida como Busa. Lá conheci o mundo do vinho. Entendi o valor do meu trabalho na terra e a importância de um parreiral. Lembro dele nos dizendo: 'nò sbeccolare', não tirem os grãos, não danifiquem os cachos”, lembra a autora. Para entender tamanho cuidado com o cacho é necessário conhecer, mais que as condições biológicas, a história de cultivo da uva no Vale dos Vinhedos.

Uma história que começa pouco depois da chegada dos primeiros imigrantes a região. Estima-se que as primeiras mudas de videiras da variedade Isabel, uma uva americana, estranha até então para os colonos italianos e austríacos, tenham chegado a região depois que Tommaso Radaeli, morador de Nova Milano, desceu a Serra em direção à Picada Feliz. Em terras ocupadas por alemães ele se encontrou com Sebastião Rushel, de quem recebeu alguns bacelos. A notícia se espalhou rapidamente pelas colônias Conde D'Eu e Dona Isabel, como eram denominadas as regiões de Bento Gonçalves e Garibaldi.

Em pouco tempo exemplares da planta estavam em mãos de Lázaro Giordani e das famílias Valduga, Conzatti, Larentis, Angheben, Panno e outros, todos integrantes das primeiras levas de colonizadores da Linha Leopoldina, que hoje abriga a parte norte do Vale dos Vinhedos e que viu, no mesmo período, a construção da Capela das Almas, a primeira da região. Poucos meses depois eles estavam plantando a variedade em seus lotes. Tudo indica que a produção de vinho começou no início da década de 1880. “Não existem dados precisos em relação ao início do plantio no Vale, mas estima-se que tenha sido desta forma que ocorreu o reencontro dos imigrantes com o vinho”, relata a museóloga.

Os parreirais de uva Isabel se espalharam e tomaram rapidamente a paisagem do Vale dos Vinhedos. Sem a disponibilidade de arames, no princípio o cultivo era feito na pérgola, com plantas sustentadas vertical e horizontalmente em troncos e travessas de madeira, tudo retirado da mata com o auxílio de ferramentas rudimentares e muito trabalho braçal.

Em menos de dez anos, antes mesmo do início do século XX, o vinho já havia alterado hábitos e até a arquitetura da região. As casas construídas primeiramente em madeira de pinho e telhado de scandole (telha trentina com 60 centímetros de comprimento e 17 de largura), ganharam porões de basalto. A rocha, que forma as bases do Vale e que influenciou o terroir do vinho, formou também as primeiras cantinas da região. Os porões de pedra, além do vinho passaram a abrigar cozinhas e boa parte da vida das famílias.

Já em 1883 um relatório do cônsul da Itália Enrico Perrod, após visita a colônia Dona Isabel, dá conta da produção de mais de 97 mil litros de vinho na Linha Leopoldina. O mesmo documento confere a Francisco Valduga, conhecido então como o Corcunda, o título de produtor do “verdadeiro néctar”.

Quase 130 anos após a produção do primeiro vinho da Linha Leopoldina, a região vive um de seus debates mais intensos. O motivo é uma proposta de urbanização de parte da área que abrigou as primeiras cantinas da região que é, atualmente, um dos mais importantes destinos turísticos do Rio Grande do Sul e a única com selo de Indicação de Procedência de vinhos no país.

Evolução

Até o final do século XIX praticamente toda a produção de vinho do Vale dos Vinhedos foi doméstica e artesanal. O vinho produzido na região passou a ser comercializado para municípios vizinhos e, posteriormente, para outras regiões do Estado. Em barris de 40, 50, 100 e 200 litros o produto chegou aos grandes centros urbanos, como São Paulo e Rio de Janeiro.

A chegada da ferrovia a partir de 1910, que ligava Montenegro a Caxias do Sul, deu novo impulso ao setor, que passou a enviar vinho de trem até Porto Alegre. Na mesma época foram inaugurados pelo governo do Estado laboratórios de análise em Carlos Barbosa, Caxias do Sul e Bento Gonçalves. Além disso, a chegada de enólogos como os irmãos Mônaco e Celeste Gobatto representaram o início da evolução na qualidade da produção.

A partir de 1929 o movimento cooperativista ganha força, com a criação das cooperativas Aurora e Garibaldi, que recebiam boa parte do vinho produzido no Vale dos Vinhedos e geraram estabilidade para o setor. A partir de 1970, multinacionais do setor vitivinícola se instalam na Serra e o capital estrangeiro chega junto com conhecimento e evolução na qualidade do produto. Já em 2001 o Vale dos Vinhedos foi reconhecido com a Indicação de Procedência, selo anexado às garrafas do vinho que sai da região e que coloca o local que recebeu suas primeiras parreiras de Isabel há cerca de 130 anos no patamar dos principais produtores de vinhos do mundo.

Fonte: Conceito Comunicação

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